Siara era uma bebé grande quando nasceu. Parece que naquele dia começara por teimar em não chorar com umas palmadinhas no rabo, tão perplexa estava com a realidade extrauterina que se pusera a observar antes mesmo de anunciar a sua chegada com um estrondoso berro.
Levaram um alguidar com água a ferver e quase queimavam os
pezinhos da bebé com o vapor a escaldar, não fosse Siara resolver-se a revelar
um ensurdecedor resmungo, pondo os pulmões em ação.
Gosto de imaginar que ali perto os animais selvagens a terão ouvido.
Siara nascera em África, numa região de paisagens exuberantes, num local
de enorme biodiversidade, onde as águas marinhas são ricas em marisco e pescado
e onde nas dunas do deserto se escondem espécies de seres únicos e incríveis.
Gosto de imaginar que algures um Leão do Kunene terá ecoado, nesse dia quente de Fevereiro, em pleno
Verão, um enorme e sonoro rugido de boas vindas a Siara. Gosto de imaginar que
algumas girafas, do alto das suas pintas, terão captado as sonoridades
pelas suas orelhas expressivas, elegantemente colocadas na cabeça sobre o longo e esticado pescoço.
Gosto de imaginar que as riscas das zebras se arrepiaram numa complementaridade
de padrões pretos e brancos. Gosto de imaginar que um elefante africano sorriu
entre as suas presas cobiçadas pelos caçadores furtivos na sua elegante e
enorme dimensão de herbívoro pacifico.
Welwitshia terá sido o nome que mais tarde Siara escolhera para assinar os
seus quadros. Gostava de pintar em aguarelas temas da natureza, animais e
plantas em tons coloridos. Siara
acreditava que a arte era a derradeira esperança da humanidade para se redimir
dos seus erros, que a ciência, por mais evoluída que fosse, isolada não podia
salvar o homem, e o planeta, de si
mesmo. Que a salvação estava na comunhão entre a arte e a ciência, sendo a arte
a expressão do sagrado.
Lembra-se, na adolescência, de pesquisar no dicionário o significado do
adjetivo “Retornados”
- Que acabou por voltar ao lugar de onde partiu;
que regressou; regressado. – lia em voz alta para si enquanto refletia , o
significado das palavras é importante mas mais importante ainda é a intenção
que lhes colocamos quando as pronunciamos. Siara incomodava-se quando a
questionavam sobre a origem do nome, sobretudo quando o faziam com uma
curiosidade sarcástica, como se algo invulgar pudesse fazer mal a alguém, como
se a diferença pudesse derrubar-lhes as
crenças e os dogmas.
-É um nome de origem
africana,
rematava Siara.
Claro que apreciava a curiosidade com intuito de
se alcançar mais conhecimento quando lhe perguntavam, por exemplo, a razão do
seu nome invulgar com uma sã vontade de saber. Porém, reparava se torciam o nariz ao dizer que tinha nascido em Angola e, nessa altura, mesmo que não pronunciada, a
palavra “Retornados” fazia-se ouvir com algum sentido depreciativo. Portugal,
um pequeno país com décadas de ditadura
onde o acesso ao conhecimento e a liberdade de pensamento foi restrito e
inclusive censurado, é normal que se verifique, nalgumas
pessoas, uma visão limitada e preconceituosa em
relação ao novo.
- Retornados?
Como poderiam dizer-lhe que era retornada se tinha nascido em África, se os
seus pais tinham nascido em África, se inclusive a sua avó materna tinha
nascido em África em 1926. Seria
retornada quando voltasse a Angola,
quando os seus pés percorressem a areia fina do deserto do Namibe e se
deixassem refrescar nas águas do Mar da praia das miragens em Moçamedes?-
pensava Siara – Ou seriam retornados os que regressam aos locais dos seus antepassados?
Claro que as suas origens eram europeias, aliás a
sua pele clara e os cabelos amarelos revelavam-no. Em Portugal retornara sim às
raízes, às histórias e vivências dos seus antepassados, às recentes memórias
genéticas da sua existência. E amava as suas raízes. Em Portugal construía a
sua história, porque somos dos locais onde nascemos e também de todos os locais
por onde passamos e inclusive de todos aqueles que sonhamos. Siara sonhava com
um planeta inteiro. Aliás, sabia bem que a sua genética tinha memórias de
povos de diferentes continentes e que até dos chimpanzés somos parentes, assim como da primeira forma
de vida que surgiu na Terra. . Somos também dos locais daqueles que amamos.
Em miúda, recorda-se, no Alentejo, de um colega
da mesma idade a questionar espantado: “Como nasceste em África e és loira?”.
Anos 80, Siara não teria muito mais de 10 anos, olhou o colega estupefacta, ele
achava mesmo que por ter nascido em África deveria ter mais melanina na pele e, possivelmente, cabelo encarapinhado.?! Não
teria ele ouvido falar de viagens, de
mestiços inclusive, da possibilidade de se nascer noutras latitudes?
Siara sabia que para
se conhecer a si mesma era importante conhecer a sua árvore genealógica, a
história da família. E os seus bisavós maternos
teriam sido retornados, sim. Obrigados a emigrar em busca de uma vida
melhor. Levados a deixar o seu país, famílias, histórias e afetos porque
Portugal não lhes dava qualidade de vida que almejavam. Porque em Portugal
havia fome, dificuldades, pobreza. Viajar de Portugal para Angola implicava
dias de caminho, muitos quilómetros, mais que aqueles que se verificam numa
linha reta de Lisboa a Luanda (cerca de 6.500
km) , muitos
mais, e as viagens, no tempo dos bisavós
de Siara, faziam-se de barco. Era preciso ter sonhos e sobretudo muita coragem,
porque só os bravos se arriscam ao desconhecido, à aventura e porque, muitas
vezes, a necessidade traz a bravura.
Excerto da “Flor do Deserto” um romance em construção, in Capítulo I Memórias fragmentadas