agosto 18, 2021

Retornados


Siara era uma bebé grande quando nasceu. Parece que naquele dia começara por teimar em não chorar com umas palmadinhas no rabo, tão perplexa estava com a realidade extrauterina que se pusera a observar antes mesmo de anunciar a sua chegada com um estrondoso berro.

Levaram um alguidar com água a ferver e quase queimavam os pezinhos da bebé com o vapor a escaldar, não fosse Siara resolver-se a revelar um ensurdecedor resmungo, pondo os pulmões em ação. 

Gosto de imaginar que ali perto os animais selvagens a terão ouvido.

Siara nascera em África, numa região de paisagens exuberantes, num local de enorme biodiversidade, onde as águas marinhas são ricas em marisco e pescado e onde nas dunas do deserto se escondem espécies de seres únicos e incríveis. Gosto de imaginar que algures um Leão do Kunene terá ecoado, nesse dia quente de Fevereiro, em pleno Verão, um enorme e sonoro rugido de boas vindas a Siara. Gosto de imaginar que algumas girafas, do alto das suas pintas, terão captado as sonoridades pelas  suas  orelhas expressivas,  elegantemente colocadas na  cabeça sobre o longo e esticado pescoço. Gosto de imaginar que as riscas das zebras se arrepiaram numa complementaridade de padrões pretos e brancos. Gosto de imaginar que um elefante africano sorriu entre as suas presas cobiçadas pelos caçadores furtivos na sua elegante e enorme  dimensão de herbívoro pacifico.

Welwitshia terá sido o nome que mais tarde Siara escolhera para assinar os seus quadros. Gostava de pintar em aguarelas temas da natureza, animais e plantas em tons coloridos.  Siara acreditava que a arte era a derradeira esperança da humanidade para se redimir dos seus erros, que a ciência, por mais evoluída que fosse, isolada não podia salvar o homem, e o planeta,  de si mesmo. Que a salvação estava na comunhão entre a arte e a ciência, sendo a arte a expressão do sagrado.

Lembra-se, na adolescência, de pesquisar no dicionário o significado do adjetivo “Retornados”

- Que acabou por voltar ao lugar de onde partiu; que regressou; regressado. – lia em voz alta para si enquanto refletia , o significado das palavras é importante mas mais importante ainda é a intenção que lhes colocamos quando as pronunciamos. Siara incomodava-se quando a questionavam sobre a origem do nome, sobretudo quando o faziam com uma curiosidade sarcástica, como se algo invulgar pudesse fazer mal a alguém, como se  a diferença pudesse derrubar-lhes as crenças e os dogmas.

-É um nome de origem africana, rematava Siara.

Claro que apreciava a curiosidade com intuito de se alcançar mais conhecimento quando lhe perguntavam, por exemplo,  a razão do  seu nome invulgar com uma sã vontade de saber. Porém, reparava se   torciam o nariz ao dizer  que tinha nascido em Angola e,  nessa altura, mesmo que não pronunciada, a palavra “Retornados” fazia-se ouvir com algum sentido depreciativo. Portugal, um pequeno país com décadas de  ditadura onde o acesso ao conhecimento e a liberdade de pensamento foi restrito e inclusive censurado,   é  normal que se verifique,  nalgumas   pessoas,  uma visão limitada e preconceituosa em relação ao novo.

- Retornados? Como poderiam dizer-lhe que era retornada se tinha nascido em África, se os seus pais tinham nascido em África, se inclusive a sua avó materna tinha nascido em África em 1926.  Seria retornada quando  voltasse a Angola, quando os seus pés percorressem a areia fina do deserto do Namibe e se deixassem refrescar nas águas do Mar da praia das miragens em Moçamedes?- pensava Siara – Ou seriam retornados os que regressam  aos locais dos seus antepassados?

Claro que as suas origens eram europeias, aliás a sua pele clara e os cabelos amarelos revelavam-no. Em Portugal retornara sim às raízes, às histórias e vivências dos seus antepassados, às recentes memórias genéticas da sua existência. E amava as suas raízes. Em Portugal construía a sua história, porque somos dos locais onde nascemos e também de todos os locais por onde passamos e inclusive de todos aqueles que sonhamos. Siara sonhava com um planeta inteiro. Aliás,  sabia  bem que a sua genética tinha memórias de povos de diferentes continentes e que até dos chimpanzés  somos parentes, assim como da primeira forma de vida que surgiu na Terra. . Somos também dos locais daqueles que amamos.

Em miúda, recorda-se, no Alentejo, de um colega da mesma idade a questionar espantado: “Como nasceste em África e és loira?”. Anos 80, Siara não teria muito mais de 10 anos, olhou o colega estupefacta, ele achava mesmo que por ter  nascido  em África deveria ter  mais melanina na pele e,  possivelmente, cabelo encarapinhado.?! Não teria ele ouvido falar de viagens,  de mestiços inclusive, da possibilidade de se nascer noutras latitudes?

Siara sabia que para se conhecer a si mesma era importante conhecer a sua árvore genealógica, a história da família. E os seus bisavós maternos  teriam sido retornados, sim. Obrigados a emigrar em busca de uma vida melhor. Levados a deixar o seu país, famílias, histórias e afetos porque Portugal não lhes dava qualidade de vida que almejavam. Porque em Portugal havia fome, dificuldades, pobreza. Viajar de Portugal para Angola implicava dias de caminho, muitos quilómetros, mais que aqueles que se verificam numa linha reta de Lisboa a Luanda (cerca de 6.500 km) , muitos mais, e  as viagens, no tempo dos bisavós de Siara, faziam-se de barco. Era preciso ter sonhos e sobretudo muita coragem, porque só os bravos se arriscam ao desconhecido, à aventura e porque, muitas vezes, a necessidade traz a bravura.

 

Excerto da “Flor do Deserto” um romance em construção, in Capítulo I Memórias fragmentadas

 

agosto 11, 2021

“Catalisadores humanos”

Não precisamos de  carregar  o peso do mundo, nem sequer  as escolhas e decisões dos outros nos pertencem ou são da nossa responsabilidade. 

Uma das afirmações que partilharam comigo recentemente lembrava que “somos feitos de amor e temos tudo o que precisamos para ser felizes”. Assim, simples. Em algum momento somos catalisadores uns dos outros, neste processo de mudança global que já está a acontecer. O amor, como a consciência do quão felizes somos, traz mais amor e felicidade.

Um catalisador é uma substância química que acelera a taxa de uma reação e  não é consumida durante o curso da mesma. Também cada um de nós, humanos, pode ter função de catalisador contribuindo para um novo paradigma ou nova consciência global.

Imagine-se  que viemos ao mundo com a possibilidade de sustentar uma harmonia energética acelerando o processo de    evolução da humanidade ou ainda  desconstruindo ilusões através da nossa energia inata.

Um “catalisador humano” não tem como função dizer aos outros o que poderão fazer ou que escolhas têm a  tomar no seu   caminho, mas somente contribuir para que cada um  tome  as suas próprias decisões, acelerando, muitas vezes instintivamente,  o próprio processo de evolução ou “catálise”. Ações ou reações entre duas ou mais pessoas, poderão levar  à aceleração da  velocidade na mudança de paradigma.

É necessário assumirmos para nós mesmos quem somos e, naturalmente, contribuiremos para que outros encontrem a sua verdade, podendo  desafia-los a  identificarem  uma versão mais evoluída da sua própria realidade  através da fragmentação de camadas  ilusórias.

Mais do que ensinar, curar ou conduzir, um “catalisador humano” ajuda a desagregar barreiras no caminho, confiando que, cada um nós, sabe o que precisa e como chegar onde quer.